D>E>A>T>H>M>E>T>A>L
#Spooktober2025 | Dia 23
Encontramos-te na antiga loja de discos da Rua do Almada. Pareceu-te um sítio tão bom como qualquer outro para fugir à chuva.
O dono está em parte incerta, o que significa que tens a loja toda para ti. Estas lojitas são sempre assombradas apenas e só por um dono. Clientes são de longe a longe e, faltando como lhes pagar, empregados também não os há. Só o beltrano que se quis soterrar com uma avalanche do seu objeto preferido. Fazem-no por paixão ou porque, chegados à meia-idade, não sabem o que fazer à metade que resta, e decidem dar-se de corpo e alma e conta bancária à Mãe Música (neste caso), ou à Mãe Literatura, à Mãe Numismática, etc. e por aí fora. Como a solidão nunca foi nem nunca será boa companheira, estas variadas Mães contraem um inevitável matrimónio de conveniência com o Pai Atulho. No caso concreto desta loja, achas um certo charme às montanhas periclitantes de discos e vinis, à sua orografia acidentada, aos picos e aos vales e aos sopés, aos sons que prometem: as reverberações de guitarradas arrepiantes, os ritmos atávicos de baterias em assalto. Sentes um calafrio agradável de antecipação.
É uma loja de música onde não se ouve nenhuma: os únicos sons são o ruído branco da ventoinha que rodopia com a preguiça de uma manhã de domingo, farta de fingir que lhe pagam o suficiente para dar conta de tanto bafio, e o roçagar de micas plásticas, que tu fazes ao dançar com os dedos de capa em capa, enquanto as percorres com os olhos em busca de algo de serventia para os ouvidos. Achas curioso como estas capas guardam o gosto de outras épocas, menos estudadas para apelar a todos e, por esse arrojo amador, também mais apeladoras, mais especiais.
Perguntas-te se o dono terá ido tomar café, se estará simplesmente a borrifar-se ou se depositará demasiada confiança na honradez da clientela (porque não poderá ser ladra a gente que partilha com ele o gosto pela música – nada mais evidente).
Lembras-te de ouvir dizer que um escritor conhecido recomenda a transgressão – especificamente o roubo – como forma de estimular a criatividade. É um argumento simples: para aprender a contar histórias, primeiro é preciso ter histórias para contar.
Não sabes se tens mão para a escrita, não ainda, mas pensas, porque não prevenir, porque não investir no futuro e roubar um vinil? Só para o caso.
Entre as capas de papelão dos vinis, que protegem a música cristalizada em círculos negros e sulcados, capturada no tempo como uma mosca em âmbar, encontras o plástico rígido e quebradiço e dissonante de um CD.
A capa é a cara de uma mulher em desenho animado japonês; faz-te lembrar a Bulma do Dragon Ball Z. Estampado no disco lê-se PANCHIKO e D>E>A>T>H>M>E>T>A>L, mas não sabes qual é a banda e qual o título, se é que é são esses os significados destas palavras e não simplesmente o género de música ou o nome da mulher ou palavras mágicas de terras distantes, um abracadabra forasteiro.
Procuras o preço e não vês nenhum. Abres a capa e não há nada além do CD a espelhar a tua cara, nem sequer uma folha solta com a lista das músicas.
Ensaias um olá tímido, não muito alto nem demasiado baixo, enquanto continuas a dedilhar vinis. Mas não olhas para eles; olhas em vez pelo canto dos olhos em busca do dono e de câmaras.
Como só silêncio te responde e o dono continua sem dar ares de si, decides deixar que a oportunidade faça de ti o que entender. Ela decide que o melhor destino para o CD é a segurança do bolso interior do teu blusão.
Sentes-te logo um pouco mais criativo e tentas gravar em ti o momento e a sensação de adrenalina.
Começas a sair e, quando toca a sineta que anuncia visitas com um som não dissemelhante do de um espanta-espíritos, ouves, do fundo da loja, um breve Volte sempre!
A casa está fria – ainda consegues ver o teu bafo a evaporar. Estás esbaforido da corrida, mas ainda eufórico da adrenalina. O cansaço só agora começa a fazer-se sentir. Sentes-te enregelado e tens a roupa ensopada, mas não a tiras nem pensas em secar-te, descalças só as sapatilhas e vais para o teu quarto, deixando no linóleo uma pista de pegadas molhadas.
Deixas-te cair de costas em cima da cama. Mal consegues esperar para meter o CD no Walkman prateado (outro objeto ao qual a oportunidade te convenceu a deitar mãos) e descobrir se afinal vale alguma coisa.
Metes os auscultadores e refastelas-te. Contavas que fosse música de elevador, alguma pimbalhada japonesa ou mesmo death metal, mas não. A música, se é que se pode chamar-lhe música, é frio tornado som, é um arrastar de unhas numa ardósia de gelo, um grito agoniado numa tundra nevada. Sentes um calafrio, que se alastra por todo o teu corpo como gelo que queima. Começas a tremer e a dar aos dentes. Das frinchas do Walkman surge névoa como a de gelo seco; tamborilas os dedos nele para o tentar abrir, mas não abre. Tentas tirar os auscultadores, mas não saem. Deixas de conseguir ver o teu bafo. Urros de predadores famintos, rapaces, sobrepõem-se aos sons gélidos; vês as tuas mãos endurecerem, agora cristalizadas e negras; bates no Walkman com toda a tua força, bates e bates e bates, mas não serve de nada, recusa-se a abrir e o som não pára, o vento gélido uiva incessante e a tua respiração acelera, fora do teu controlo, ofegas e tremes, o frio é inescapável e dás-te a ele.
Exatamente dois minutos e cinquenta e sete segundos depois de pores o disco a tocar, o som cessa.
Olhas para o vazio onde ficavam antes as tuas mãos, para os tocos ensanguentados, para os estilhaços negros que cobrem o chão de linóleo, e prometes que nunca mais te deixarás levar pela oportunidade.
Este texto faz parte da minha participação no #Spooktober2025, promovido pela Rita S. através conta de Instagram Spooktoberwriters. Cada conto é inspirado numa música.
A música deste conto é The Carpathians - Ben Frost.


Gosto muito dos teus contos e fico sempre a querer mais. Sou uma fã de thrillers. Para quando um livro?